segunda-feira, 27 de julho de 2015

EKOA: EM DISCO, A ANCESTRAL AÇÃO ENTRE AMIGOS

Ekoa foi a palavra escolhida por Kleber Serrado (cantor e ocasional ritmista), Bruno Conde (violonista) e Theo Cancello (piano e outros teclados, além de violão),para título do seu primeiro disco, lançado em junho de 2015. Segundo eles, o significado de ekoa, em tupi-guarani, traduz o espírito do trabalho que desenvolvem em conjunto: um lugar onde os amigos se encontram.

O conceito pode muito bem ser estendido para o processo de captação de recursos que possibilitou a produção do disco: o crowdfunding, uma atualização em tempos de internet da ancestral ação entre amigos, considerada aí também a extensão do conceito de amizade que o Facebook popularizou.

É um registro que se constrói sobre a sólida tradição da MPB, entendida não como um rótulo mercadológico mas como campo histórico da criação musical popular, que começa com o samba urbano, engloba as linguagens regionais e converge para diálogos profícuos com outras culturas musicais, como o jazz.

A composição José, de Theo Cancello, funciona como tradução exemplar desses cruzamentos e influências, culminando com um solo de piano que faz emergir de um samba chorado um improviso jazzístico no espírito do fox.

José (Theo Cancello) com o trio Ekoa.

O disco traz ainda composições de outros autores, no conceito estendido de amigos, que inclui a relação familiar, com as letras precisas de Luiz Cancello, e uma composição de João Carlos Rocha, em franco desenvolvimento de carreira como maestro e compositor, na área da música erudita.

O trabalho é marcadamente camerístico, levado ao extremo da dispensa de instrumentos de percussão que seriam usualmente esperados em tal repertório. O que, além de tornar o resultado sonoro mais singelo, ressalta estrategicamente os dons artísticos e a qualidade de interpretação do grupo.


O RAP NA ALDEIA GLOCAL

Já foi abordada anteriormente (http://brindemusical.blogspot.com.br/2015/07/tupi-or-not-tupi-questao-antropofagica.html) a aplicação da postura cultural antropofágica no universo da música indígena brasileira. 

Afinal, se o conceito de antropofagia, conforme proposto pelos modernistas, tem a ver com a deglutição e transformação de referências de uma cultura por outra, não há porque não aceitar que músicos índios assimilem e reprocessem elementos (alimentos) musicais de outras procedências (brancas, negras, orientais).

Diante de casos concretos e específicos surgem muitas vezes questionamentos sobre a verdadeira natureza do processo. Se ocorre efetivamente o que podemos chamar de antropofagia, ou se estamos diante de situações de pura aculturação, ou seja, dominação de uma cultura sobre outra.

O rap índio do grupo Brô MCs aparenta se situar nesse território ambíguo de pertencimento, e o videoclip do rap Koangagua pode servir de base para uma apreciação crítica do assunto.

Clipe oficial da música "Koangagua", do grupo Brô Mc's, formado por índios bororos do Mato Grosso do Sul.

O rap é entoado no idioma natural dos integrantes da banda. Mas isso em si não garante a primazia da origem índia sobre o gênero dos negros dos Estados Unidos..

Fica o registro para se pensar e aprofundar uma reflexão a respeito. Fica também uma questão à espera de resposta. Trata-se de uma versão pouco referenciada do conceito de glocal (pensar globamente, agir localmente), com o índio aplicando ao seu entorno as concepções da aldeia global? Ou se trata, na verdade, do inverso: a adoção pura e simples do padrão global como modelo a ser seguido na realidade local?

quarta-feira, 8 de julho de 2015

CASA DI CABOCLO: O Rap Di Crespo.

Breve resgate, em relato resumido, de depoimento do rapper Crespo, focado no álbum de estreia do grupo Casa di Caboclo, em que a autoria das 10 faixas é dividida entre ele e Leo Cunha, responsável pela pulsação, inserção de colagens e piano acústico. 

Perguntado sobre o processo de criação, Crespo responde que o texto é o que orienta a música. "As colagens normalmente surgem depois da gravação ou por uma deixa dada na própria letra ou pelo simples fato de termos achado alguma fala interessante em algum filme ou até em outras músicas que complementem a nossa ideia."

Sobre o rap: "A principal qualidade do rap é se permitir, e não ter vergonha de revisitar coisas antigas e também de trazer qualquer som que lhe interesse." Inclusive o "di" do nome do grupo, que está aí para marcar a sonoridade da fala brasileira.


Como ele reage, provocado sobre a questão da brasilidade do rap nas palavras de Júlio Medaglia, para quem o Brasil já tem o seu rap com sotaque nosso, que é o samba-de-breque, e de Antônio Nóbrega, para quem "a embolada tem uma tessitura de rima e de quadratura rítmica superior ao rap, além da melodia, coisa que o rap não tem"?

Crespo diz ver familiaridade entre o rap e o samba-de-breque, principalmente nas colagens e descrições de Moreira da Silva. E que o rap vem se modificando e ganhando cada vez mais melodia no mundo inteiro. Com as melodias de embolada ele convive desde criança, ouvindo Braulio de Castro, autor de várias emboladas gravadas por Caju e Castanha. Ele é muito amigo de seu pai, Barbosa, que compôs o samba escolhido como o melhor samba-enredo paulista do Século XX: Embaixada de sonho e de bamba, para a Mocidade Alegre. Junta ao seu convívio figuras como Noite Ilustrada, Geraldo Filme, Isaías do Bandolim, Nando Cordel e outros.

Essa mistura funciona como uma espécie de marca diferencial do seu trabalho, denunciando a herança do convívio. A faixa O Tempo me parece exemplar, com a feliz articulação da batida típica do rap com um fraseado de caráter melódico/melancólico no piano. 



O Tempo (Crespo) com Casa di Caboclo


O disco, de 2008, produzido pelo Studio Casa1, tem, ainda, as participações de Max B.O. e DJCris, vozes adicionais de Daniela Allcarpe, Ismael Santos e Rodrigo Jubeline (que também toca flauta e violão) e Gema no baixo.

terça-feira, 7 de julho de 2015

O ROCK TUPINIQUIM EM LÍNGUA NATIVA.

O rock brasileiro deve cantar em português? 

Quando essa questão é posta, quase sempre aparece alguém dizendo que não tem nada demais cantar  rock nacional em inglês.

Como assim, cara-pálida?, diria o índio (da América do Norte). Se pode ser cantado em outra língua, por que não em tupi?, diria o índio (da América Latina).

Então, tá.

Arandu Araukaa é uma banda independente que mistura heavy metal com a tradição musical indígena e regionalismos brasileiros. 

A banda lança neste ano seu segundo álbum (Wdê Nnãkrda), com composições cantadas nos idiomas xerente, xavante e tupi, decisão que tem origem na familiaridade de um dos integrantes da banda, o guitarrista Zândhio Aquino, com o povo xerente. 

O vídeo a seguir ilustra a proposta da banda, na canção Hêkawa Waktú (uma das faixas do disco), que significa Núvem Negra em xerente.

Hêkawa Waktú, música do grupo Arandu Araukaa

sábado, 4 de julho de 2015

TUPI OR NOT TUPI: A Questão Antropofágica do INDIAN INDIE.

A música indígena também procura soluções de produção, divulgação e distribuição independentes para atingir seus públicos bem como potenciais apreciadores da arte musical mais nativa e mais antiga do Brasil, anterior mesmo à formação do país. Indy índio, indian indie.

Um exemplo disso é o trabalho desenvolvido por Wakay (Wakay Cícero Pontes da Cruz), índio da reserva Thá-Fene  (Semente Viva), em Lauro de Freitas, na Bahia, próximo a Salvador.

 
Matydy Ekytoá (Caminho de Todos), composição de Wakay

A composição do vídeo, canção título do álbum Matydy Ekytoá (Caminho de Todos), é cantada no idioma Fulni-ô. A autoria é do próprio Wakay, que atua como músico terapeuta e desenvolve atividades artísticas e educacionais promovendo a cultura de seu povo.

Mas as composições de Wakay não se fecham no universo tradicional. Ele incorpora timbres da tradição europeia, como instrumentos de arco, e padrões rítmicos que revelam influência da música urbana, os modelos de música popular que se instauraram com o advento e expansão das mídias sonoras. Sua música indígena absorve, deglute o pop, introduzindo o balanço da música de mercado na ginga da tradição do índio. 

Não seria isso uma antropofagia às avessas do conceito modernista que tem em Oswald de Andrade um dos principais expoentes?  E não justifica, a propósito, a inclusão de seu poema trocadilhista no título desta postagem? Pois é!

domingo, 28 de junho de 2015

OUTRAS PEGADAS DO ROCK: Desconfigurando o Gênero.

Num de seus históricos programas sobre música, na TV americana, o maestro e compositor Leonard Bernstein iincluiu entre os elementos constitutivos da linguagem do jazz o timbre dos metais, o uso da bateria (drum set) e outros componentes da sonoridade musical. 

Um dos expedientes para repensar gêneros passa pela desconsideração de elementos constituintes típicos como esses. Como ilustração dessa desconfiguração no gênero rock praticado no Brasil, são destacados dois exemplos.

O primeiro vem do Sul, com o rock gaúcho do curitibano Yanto Laitano, como acontece na canção Meu Amor, que não inclui o som das guitarras.



Meu Amor (Yanto Laitano)

Yanto Laitano tem composições em outras linhas de criação, além do rock, e não só na na área da música popular. Escreve trilhas sonoras para documentários, principalmente ligados a causas indígenas. Seus estudos e incursões em áreas da experimentação musical contemporânea o levaram a compor obras de maior rigor formal, ainda que algumas vezes inusitadas, como Peça para Cães Famintos, que apresentou com o grupo Ex-Machina.

O outro exemplo vem do Norte, com o rock da dupla paraense The Tump, banda montada com o credo "sem guitarristas". Além das vozes e contrabaixos do duo (Alex Lima e Bárbara Lobato), lançam mão de recursos eletrônicos, desde bateria programada até som de celular. Michê é um exemplo de seu eletrobass rock.



Michê (The Tump)

No limite, essas práticas podem levar a se ter dúvidas quanto ao enquadramento de uma composição em determinado gênero. E corre-se o risco de se deparar com alguns questionamentos que, a princípio, podem parecer inapropriados, quando não opiniões de quem não tem a menor noção. Como o personagem do Irmão Mais Novo, criado pelo mesmo Leonard Bernstein, citado há pouco.

O Irmão Mais Novo era um interlocutor que, por falta de conhecimento mais aprofundando de um assunto (no caso, música) fazia algumas perguntas "cretinas", Mas que, de alguma forma, sempre revelavam um ângulo crítico da questão, que permanecia velado, intocado. E assim, no fundo, o Irmão Mais Novo acabava pondo o dedo na ferida.

Então, vai aqui uma questão típica de Irmão Mais Novo. Em 1978, Chico Buarque compôs a canção Até o Fim, que traz o piano numa levada semelhante ao que Yanto Laitano faz em Meu Amor. O resultado é um gênero ambíguo que parece transitar entre os campos da síncope africana e do rock. Se pende mais para o lado da MPB é algo que pode ser creditado mais ao histórico do compositor do que à composição em si. É ouvir e pensar um pouco, de ouvidos abertos..

 
Até o Fim (Chico Buarque)

CARTA DE INTENÇÕES

Este espaço foi criado em concordância com as seguintes intenções, expectativas e condições:

1 - Reunir materiais e informações sobre música brasileira autoral, criada e produzida mediante processos de derivação econômica e artística. 

2 - Entenda-se por derivação econômica a utilização de meios de produção, divulgação e distribuição de obras musicais em que o autor participe com razoável grau de autonomia e decisão do processo econômico e mercadológico. É o que se pretende significar pelo uso da palavra "independente".

3 - Entenda-se por derivação artística o desenvolvimento, por esses meios, de obras musicais que contenham elementos significativos de diversificação e inovação nos cenários culturais em que se inserem. É o que se pretende significar pelo uso da palavra "alternativa".

4 - Os dois termos acima, bem como os conceitos encerrados nas palavras "música" e "brasileira", que completam o título deste espaço, devem ser e serão objeto permanente de reflexões nas postagens aqui publicadas, para que o conteúdo veiculado não resulte restrito a interpretações segmentadas da realidade musical.

5 - A divulgação será sempre acompanhada de textos críticos e analíticos, com o intuito de encontrar aspectos confluentes que permitam encaminhar uma percepção abrangente dos fenômenos musicais dentro dos múltiplos cenários culturais do país. 


6 - O conteúdo resultante poderá ser utilizado como fonte para ampliação e atualização de texto escrito pelo criador e administrador do espaço, publicado pela Editora Brasiliense em 1988 (História da Música Independente, coleção Tudo é História n. 124). 

7 - Embora o projeto tenha o formato livro como modelo formal, não se assume qualquer compromisso quanto à sua concretização nesse formato. A iniciativa, que vem sendo desenvolvida desde fins dos anos 1990, não tem prazo estipulado de finalização nem vínculo editorial com qualquer empresa do ramo. A propósito, tendo em vista a dinâmica econômica e cultural da realidade musical, após o advento das mídias digitais, especialmente da comunicação em rede via internet, o modelo ideal no momento parece ser o de um texto em constante reelaboração.